Skip links
Entrevista com Deyse Reis da Mulier Filmes

Deyse Reis: Como Pensar Fora da Caixinha e Criar Roteiros Originais no Audiovisual Brasileiro

Nesta entrevista exclusiva, a fundadora da Mulier Filmes fala sobre a crise de originalidade nos roteiros, a importância do repertório criativo e o que os novos roteiristas precisam fazer para se destacar no mercado.

Quem é Deyse Reis?

Fundadora da Mulier Filmes, Deyse é graduada em Jornalismo pela Faculdade Social da Bahia e em Cinema pelo Latin America Film Institute. Trabalhou como assessora de imprensa da cantora Kylie Minogue no Brasil (2008 – 2015) e seu livro-reportagem (Diário de Uma Floresta Seca) foi indicado ao Congresso de Comunicação como um dos 5 melhores de 2008. No audiovisual, participou de curtas, comerciais, longas e séries de TV, trabalhando em projetos para a Discovery Kids, Amazon Prime, Disney Plus e HBO Max. Foi curadora do V, VI e VII e Rota Festival, selecionando projetos para o laboratório de séries, e jurada no festival Jornada da Heroína e Mostra Super Curta. Deyse recebeu indicações de Melhor Diretora, Melhor Série e Melhor Fotografia no Brazil International Monthly Independent Film Festival, saindo vencedora na categoria de Melhor Roteiro 2020.

Nos últimos anos, o mercado audiovisual brasileiro vive um paradoxo curioso: nunca tivemos tanto acesso a cursos, laboratórios, consultorias e editais — e, ainda assim, a sensação é de que as histórias estão cada vez mais parecidas.
Deyse Reis, fundadora da Mulier Filmes, diretora premiada e curadora de festivais, tem observado de perto essa repetição criativa que vem preocupando produtores e players.

Nesta entrevista exclusiva, ela compartilha reflexões e dicas práticas para roteiristas iniciantes e experientes que desejam romper com o óbvio, reinventar seus processos criativos e criar histórias que realmente causem impacto.

Deyse, você tem uma trajetória que vai do jornalismo ao cinema, passando por experiências internacionais e grandes players do streaming. Como essa diversidade de vivências influenciou a forma como você pensa histórias?

Creio que me deixou mais observadora, mais atenta ao que acontece ao meu redor. Desde a leitura de uma notícia até a minha ida à padaria, posso ter inspiração para uma boa história, seja ela dramática, fantasiosa ou documental.

Hoje se fala muito sobre “falta de originalidade” no audiovisual brasileiro. O que, na sua visão, está por trás dessa sensação de repetição nos projetos que chegam aos editais e players?

Uma vez, ainda na faculdade, um professor me disse algo que nunca esqueci: “Não existem mais histórias originais. Todas elas já foram contadas. Ainda assim, sempre há uma maneira interessante e diferenciada de conta-las”. E é uma grande verdade. As séries e filmes que gostamos e que se destacam, são aquelas que apresentam algum tipo de frescor, algum tipo de novidade. Seja no formato, no arco narrativo, no estilo de gravação etc. E, de uma forma geral, as histórias e formatos acabam se repetindo. Tem faltado uma certa ousadia. Pensar “fora da caixinha”.

Existe um “padrão narrativo” que está sendo reproduzido demais? Quais são os clichês que mais aparecem e que você acha que os roteiristas precisam começar a desconstruir?

Chegam muitas histórias de vingança, de algo que aconteceu com um parente ou amigo e a pessoa decide resolver o problema; histórias de jornadas de superação, com algum personagem muito preconceituoso ou nocivo e que vai mudando ao longo da narrativa; histórias LGBT de um amor impossível, entre outras. De forma geral, o que aparecem são histórias “mais do mesmo”, que já vimos inúmeras vezes por aí. Ainda que a sua temática seja algo já debatido em outros projetos, busque uma maneira de torna-lo atrativo e diferenciado. Por exemplo, quantas histórias temos de mulheres que sofreram alguma violência e resolvem se vingar dos seus agressores? Mas, em “Bela Vingança”, a protagonista resolve se vingar com sagacidade e inteligência ao invés de usar armas. O debate sobre a cultura do estupro é muito mais voraz e interessante da forma como a autora fez do que nesses filmes de justiceiras. E o final abre um debate maravilhoso! Já vimos outros projetos sobre o quão duro é envelhecer na nossa sociedade, mas a maneira como isso foi tratado em “A Substância” foi genial! Transformar a história em um terror gore, meio fantasioso, mas que deixava a crítica muito clara e precisa. Ou usar a boneca mais famosa do mundo, “Barbie”, para falar do machismo… ou usar a meia irmã de Cinderela para questionar os padrões de beleza. É o fator diferente que conquista. Busquem isso.

Como roteirista e curadora, o que te faz perceber quando um projeto realmente tem uma voz própria?

Quando ele traz um viés diferente. Quando ele busca abordar a temática, seja ela qual for, de maneira inusitada, intrigante, interessante.

Você acha que os roteiristas brasileiros estão consumindo pouco conteúdo fora da bolha (por exemplo, referências internacionais, literatura, games, HQs, música)?

Obviamente, para trabalhar com roteiro, cinema e arte de maneira geral, você tem que ter repertório. O que isso significa? Que o artista precisa estar em contato com todo tipo de conhecimento, de estética, de linguagem. Quanto mais repertório você tiver, melhor preparado você estará para direcionar a sua narrativa diante daquilo que você quer retratar, diante da mensagem que quer passar. Por exemplo… hoje, temos muitos artistas novos na música pop internacional. Alguns muito bons até. Ainda assim, são artistas como Madonna, Gaga, Beyoncé que se mantém relevantes por trazerem influencias de outros ritmos musicais para suas obras, por incorporarem aspectos da arte, da moda, da cultura popular para criar tendências. São os artistas com conhecimento rico que conseguem criar conceitos interessantes.   

Qual é o papel da pesquisa e da vivência real no processo criativo?

A pesquisa é fundamental em qualquer texto que você queira escrever. Erroneamente, alguns roteiristas acham que a pesquisa só é necessária se formos escrever algo sobre uma época diferente. Não, não! Pesquisa está presente nas atitudes do seu personagem, na doença que ele tem, no trabalho que ele exerce, na comida que ele gosta de preparar, nos móveis que ele possui e por aí vai. Imagine escrever uma história sobre médicos, mas não sabe nada sobre medicina, sobre medicamentos, tratamentos etc. É aí que entra a pesquisa, a leitura, conversar com pessoas semelhantes ao seu personagem, observar o dia a dia delas. Não há uma fórmula. Depende muito do que você vai escrever. De todo modo, não é só sentar na frente do computador e começar a digitar. É um processo muito mais longo e minucioso se você quer entregar algo consistente. Até mesmo se sua história for sobre fantasia. Ainda que ela não seja condizente com a realidade, o universo e o comportamento dos personagens vão ter algum traço real e demanda pesquisa da mesma maneira.

O que é, pra você, “pensar fora da caixinha” de verdade? É mais sobre forma, conteúdo ou atitude criativa?

Para quem viveu nos anos 1990, tivemos um programa que era um grande sucesso: “Você Decide”. O conteúdo em si não tinha nada de diferente. Eram histórias aleatórias e comuns, mas o público votava e escolhia qual o final queria assistir. Dar ao público o poder de escolha era uma sacada muito boa.  

Se pegarmos Black Mirror, o conteúdo é interessantíssimo. São contos ficcionais, futuristas e episódicos, que refletem o lado tenebroso da tecnologia. Tem uma crítica social muito bacana, utilizando a ficção científica para questionar coisas reais (ou possivelmente reais) com um toque fantasioso.

The Office tem as duas coisas. Apresenta o formato de “documentário”, em que os personagens conversavam diretamente com o público, e usavam a comédia para criticar e retratar atitudes controversas que acontecem diariamente na maioria dos escritórios.

Pensar “fora da caixinha” é trazer propostas novas. Um projeto audiovisual é, acima de tudo, um produto. E como o seu produto pode ser diferente dos que temos no mercado? Quando passamos a pensar dessa maneira, a caixinha de Pandora se abre.

Muitos roteiristas iniciantes tentam “agradar o mercado”. O quanto isso é perigoso para a criação?

Para a criação, é extremamente perigoso. Temos que escrever aquilo que acreditamos, independente de ser o que o mercado procura. Tem filmes e séries que levam anos para serem feitos, exatamente porque o momento mercadológico não era propício para aquele projeto. Mas, se você acredita, uma hora ele acontece. Apesar de que não há nada de errado em escrever voltado para as tendências mercadológicas, desde que você escreva com qualidade, com verdade.    

Que tipo de exercício você recomendaria para quem quer encontrar uma voz autoral e se destacar?

Creio que o primeiro passo é encontrar o gênero que mais lhe agrada, que te traz mais conforto para criar e que você tem mais conhecimento. Depois, pesquisar sobre esse gênero. Ter total domínio do que já foi feito nele e, a partir daí, ver o que você pode acrescentar e agregar. As nossas vivências, nossos traumas, nossas visões de mundo também ajudam muito a construir a voz narrativa. Ter um pouco de você no texto é sempre bom, nem que seja através de uma persona que você cria para falar coisas que não tem coragem, por exemplo.

Você acredita que existe espaço para roteiros experimentais e narrativas menos convencionais nos editais e players brasileiros?

Nos editais, nem tanto. Embora dependa do seu poder de convencimento para a banca. Se eles acharem que o seu projeto é interessante e visionário, pode dar certo. Mas, de modo geral, o edital te dá pouco espaço para textos pouco convencionais. Até porque acabam sempre sendo voltados para a temática social e refletem muito com o momento político do Governo gestor. Já os players são mais receptivos. Desde que a sua história seja boa.

Que erros você mais vê em projetos de novos roteiristas que você analisou como curadora?

Saber vender e apresentar a sua ideia. E isso é um aprendizado constante. Até quem já está no mercado também tem essa dificuldade. Muitas vezes, a ideia é até boa, mas o roteirista não sabe como apresenta-la de forma atrativa. Além disso, seguir nas temáticas de senso comum, sem grandes novidades.  

O que você gostaria que todo roteirista em formação soubesse antes de enviar um projeto para avaliação?

Ótima pergunta. Parece óbvio, mas… é importante que todo roteirista saiba bem o Português! Ser roteirista é também ter domínio da própria língua, pois é assim que conseguimos brincar e tornar a nossa narrativa interessante. Os projetos chegam mal escritos, sem qualquer pontuação, mal revisados, sem concordância ou coerência. Como vou confiar em um projeto de alguém que não sabe nem escrever um argumento ou sinopse? A sua ideia pode ser maravilhosa, mas se você não tem domínio da língua, não tem como passar credibilidade.

É importante também não ir já mandando roteiros, argumentos, bíblias ou coisas do tipo se o player/produtora não tiver solicitado. Se conseguir o contato de um responsável, entre em contato se apresentando e fazendo uma breve descrição do projeto. Mostre-se disponível para apresentar melhor o projeto caso o player tenha interesse. Somente se o player responder, envie os materiais. E envie sempre registrado na Biblioteca Nacional.

Para quem já tem experiência e sente que está se repetindo, como retomar a chama criativa e se desafiar de novo?

Acho que isso vale para todos, não só para os experientes… é importante estarmos atentos ao que acontece ao nosso redor. Às vezes, de algo super inusitado que alguém te conta ou que você lê nas notícias, pode surgir uma ideia bem bacana. Ampliem o olhar de vocês. Creio que é o melhor conselho que posso dar.

Como equilibrar a experiência técnica (estrutura, formato, regras) com a liberdade criativa necessária para inovar?

Esse equilíbrio é meio que orgânico. A parte técnica é a ferramenta necessária para deixar o seu texto melhor estruturado e agradável. Sem técnica, uma boa ideia não se sustenta. E vice versa. São coisas complementares. Seja livre para criar e use as técnicas para dar essa sustentação. Uma não anula a outra.

Você acredita que o mercado brasileiro está pronto para narrativas mais ousadas ou ainda existe resistência?

Ainda existe um pouco de resistência, mas muito por conta da questão financeira. Apesar de termos a cota de telas para produções nacionais, o púbico brasileiro ainda não consome tanto os seus próprios produtos. Então, os streamings acabam cedendo àquilo que tem mais chances de dar certo e ter retorno.

Como foi o processo de criação dos seus projetos que mais te desafiaram — o que te fez sair da zona de conforto?

Tive que ampliar o meu olhar e estar aberta a dar novos direcionamentos às histórias. Durante a Pandemia, estávamos presos em casa, pessoas morrendo todos os dias, falta de vacina, um verdadeiro caos. Eu passei a conversar muito com os amigos e via que ninguém conseguia ter um olhar positivo sobre o problema. E, de toda história, sempre temos (pelo menos) dois lados. E comecei a trabalhar nos roteiros buscando situações positivas que aconteceram comigo e com outras pessoas naquele momento tão horroroso. Então, de um bate-papo com amigas, eu vi uma possibilidade nova de abordar a temática, pois todo mundo só retratava as mazelas que ocorriam. Atualmente, estou desenvolvendo uma série e, em uma reunião, vi que mercadologicamente talvez a forma como estruturei a série não fosse dar certo. E o projeto está sendo redirecionado, mas mantendo a sua essência. Precisamos estar abertos a olhar diferente, a ouvir feedbacks. Isso pode ser muito benéfico por mais difícil que seja ouvir uma possível crítica. É importante filtrar. Nem toda crítica é construtiva ou útil, mas é importante avaliar para tornar o projeto melhor.

Na sua opinião, o que define um roteirista contemporâneo hoje?

Alguém que está atento e não tem medo de se testar nos variados formatos e gêneros.

O que você acha que o audiovisual brasileiro mais precisa neste momento?

Nossa, tanta coisa (risos). Mas, olhando para o lado do roteirista, o audiovisual brasileiro pode ser mais ousado. Desde a criação de histórias bem brasileiras, já que temos uma cultura tão rica, até o desenvolvimento de histórias mais globais. Temos a tendência a valorizar só o que é de fora, mas temos tantos talentos aqui dentro. Podemos nos inspirar sempre em artistas internacionais, mas entender que o brasileiro tem o seu jeito próprio de contar histórias e não há nada de errado nisso. Podemos alcançar todo tipo de público. Temos que aproveitar o bom momento que vivemos com “Ainda Estou Aqui”. O mundo está olhando para nossos filmes com outros olhos. Esse ano tivemos “O Último Azul”, que é uma ficção científica com um toque beeem brasileiro. O “Agente Secreto” indo muito bem nos festivais e sendo a nossa aposta no Oscar 2026. Temos muitos roteiristas talentosos por aqui.

Como os roteiristas podem se preparar para o futuro — com tantas mudanças nos formatos, plataformas e linguagens?

Continuar estudando sempre. A vida é um constante aprendizado. Não podemos achar que sabemos de tudo sobre tudo. As tendências mudam, os formatos, as narrativas, as temáticas, as formas de conquistar o público também. Fiquem sempre atentos a essas mudanças e se permitam aprender.

Se você pudesse deixar uma mensagem para os roteiristas que estão lendo essa entrevista, qual seria?

Não desistam. A carreira é dura, é árdua, mas há espaço para quem quer oferecer um trabalho consistente. Não existe fórmula. Não tenho, infelizmente, como dizer aqui quais são os passos a dar para realizar o sonho de ser roteirista. Adoraria poder fazer isso! O lance é estudar, se manter atualizado, estar atento a tudo o que acontece, escrever bastante, deixar os projetos preparados, tentar os festivais e as rodadas. Se façam vistos, sejam ousados. Não esperem que as coisas caiam no colo. E acreditem, acima de tudo, na capacidade de vocês. Se joguem e boa sorte!

Conversar com Deyse Reis é como receber um lembrete sobre por que escolhemos escrever.
Em tempos em que o mercado se mostra cada vez mais competitivo e as histórias parecem seguir trilhas repetidas, ela nos recorda que a diferença não está no tema — mas na forma de olhar para ele.

Originalidade, afinal, não é descobrir algo inédito, mas fazer o público enxergar o já conhecido sob uma nova luz.
É essa ousadia — de pensar, sentir e narrar diferente — que transforma uma boa ideia em uma obra memorável.

Ao encerrar esta entrevista, fica o convite para todos os roteiristas:
revisitem seus projetos, questionem suas fórmulas, abram espaço para o inesperado.
O audiovisual brasileiro precisa de olhares corajosos, de histórias que arrisquem — e de autores que não tenham medo de reinventar o próprio ofício.

 “Pense fora da caixinha. Amplie o olhar. Escreva o que só você seria capaz de escrever.” — Deyse Reis

Agora queremos ouvir você:
Qual pessoa do audiovisual você gostaria de ver na próxima entrevista aqui no Roteiros e Narrativas?
Deixe nos comentários e ajude a escolher o próximo nome dessa série de conversas inspiradoras.

Nosso site utiliza cookies para aprimorar a sua experiência de navegação.