A ilusão do relacionamento perfeito
A princípio, a maioria de nós sonha com um relacionamento que seja intenso e eterno. Essa é basicamente a premissa de muitos filmes, encontrar e ficar com o seu verdadeiro amor não importa a que custo.
O que quero trazer para a reflexão é como o cinema conseguiu deturpar o que vemos e entendemos como amor. Sofremos por comparar nossa realidade com o recorte da vida de um personagem fictício.
Primeiramente, já digo que talvez o doce sabor das comédias românticas fique um pouco amargo depois desse texto. Não é minha pretensão, quero apenas mostrar como uma boa música, jogada de câmera e paletas felizes, mudam completamente acontecimentos que se fossem à realidade seriam incômodos ou até assustadores.
Sobretudo, aqui nós vamos falar especificamente do relacionamento romântico. O par ideal que os filmes tanto nos vendem.
O único e verdadeiro amor
A comédia romântica é um dos que mais tem essa temática, do casal que se conhece e vão ficar juntos para sempre em um relacionamento perfeito.
Sendo sempre o par para o protagonista, uma pessoa persistente, enquanto tem toda a paciência de esperar. Isso quando não fica rondando ou fazendo acordos para se aproximar do seu interesse mesmo que a outra pessoa não queira essa aproximação. E quando esse par é uma pessoa extremamente babaca ela muda para poder ser digno de ficar com nosso herói.
Todavia esse tipo de filme acaba romantizado muitos comportamentos que na realidade são bem inadequados.
Pensando que o público-alvo muitas vezes são adolescentes ou jovens adultas, que às vezes, ainda não tiveram um relacionamento. Muitas acabam abrindo mão de pessoas que seriam extremamente interessantes porque acreditam que vão encontrar o personagem da sua obra favorita versão vida real. E não me refiro apenas a filmes ou séries, porém animações também entram nesse comparativo.
Personagens fortes, icônicos, bonitos e simpáticos como Kakashi e Gojo ou até mesmo os caladões como Fushiguro, Gray e Itachi são alguns exemplos. O fandom tem suas idealizações com base nesses personagens, apesar de as histórias não serem de cunho romântico.
Uma pesquisa feita pela Albion College revela que quanto mais pessoas casadas acreditam que os relacionamentos de filmes, séries e afins são reais, menos se importavam com o relacionamento atual. Bem como consideravam ainda mais a possibilidade de trocar de parceiro ou ficar solteiro. Afinal existem pessoas mais interessantes por aí…
Em outras palavras todos estamos fadados a ter essa ótica do amor televisivo como único e real, como se tudo que fosse fora desse modelo, não fosse realmente amor.
O amor idealizado
Uma coisa que esse tipo de produção em massa faz muito bem é deixar nós, telespectadores desejando esse mesmo amor que acabamos de assistir, mesmo não sendo amor de fato.
Vamos aos exemplos mais práticos.
10 coisas que eu odeio em você é um filme sobre um cara que faz uma aposta para sair com uma garota. Ele insiste e a encurrala de todas as formas para convencê-la. Então ele faz um “super gesto” na frente de toda a escola para que assim, ela se sinta obrigada a aceitar.
Só nessa situação já podemos começar a lista de tudo o que está errado. Se alguém fica te seguindo e insistindo mesmo você deixando claro que não quer, no mínimo existe uma certa obsessão, o que, com certeza não é amor e é claramente preocupante.
No caso do filme a desculpa é a aposta, o que camufla as atitudes do rapaz e depois que eles se apaixonam torna tudo justificável.
Através da minha janela, um filme recente, no entanto que ao assistir também tem certos problemas. A garota segue o rapaz e coleciona incontáveis fotos dele, pesquisa tudo sobre a vida dele e ele simplesmente invade o computador e a casa dela. Mesmo que haja um crescente romance posterior, a forma que isso é iniciado já é errado por si só.
Demais pra mim, uma garota que quer a todo custo viver um romance. Se atrai por um garoto e começa a segui-lo por toda parte, descobre tudo sobre sua vida e ainda faz joguinho psicológico para conseguir sair com ele. Mesmo ele não tendo interesse.
Todas essas situações são iniciadas pelo desejo, o que “eu” quero é mais importante do que a vontade do outro. Realmente chegando a um nível de obsessão, onde o outro vira um objeto de desejo a qual sua escolha não me importa. Vai estar comigo e vai mudar de ideia sobre não querer.
E mesmo que o personagem em si não obrigue essa mudança do querer, a narrativa passa esse pano e muda esses sentimentos. Assim o alvo do desejo, passa a desejar também.
Essa ideia de “faça tudo para ficar com quem gosta” cria essa expectativa que se você gostar de alguém e fazer de tudo, vai ser recíproco. E se não for, ela vai mudar de ideia.
Existem outros pontos problemáticos como a garota que é feita pra mudar o rapaz, o par que se conhecem, mas já estão em um relacionamento. Então vilanizam o parceiro para ser ok a traição e não ter uma responsabilidade afetiva.
Isso quando o filme não envolve manipulação emocional, controle de com quem a pessoa pode ou não se relacionar, supervisão constante do que está fazendo. Mascarando essas ações como forma de preocupação e com a desculpa do “eu te amo”.
Tudo camuflado por homens bonitos e charmosos. Afinal, um rosto bonito falando o quanto se importa e se sente ameaçado que a sua namorada converse com outros homens é de entender, certo? Se ele é um vampiro e diz que tem vontade de te matar, com certeza está tudo bem, você confia no amor dele. Assim como se ele te trancou para que você se apaixone por ele, é só o carinho dele por você, né?
Com certeza não!
A realidade é frustrante
Podemos dizer que existem ao menos três estereótipos do cara ideal.
O cara perfeito em todos os aspectos, o príncipe encantado versão moderno, o badboy e o frágil, em que seu dilema é sentimental e pode ser salvo pela garota.
Pegando qualquer narrativa que tenha o “romance ideal” vamos ter algum desses perfis idealizados para fazer com que as mulheres sintam que precisam de alguém assim. O que vai ser totalmente frustrante, já que na vida real as mulheres querem homens de verdade. Mas o que é esse homem de verdade? Não existe um demonstrativo disso.
Exemplos: Para todos os garotos que já amei – O cara perfeito
Um Match Surpresa – Frágil
Amor com Data Marcada – Badboy
Através da minha janela – Badboy
10 Coisas Que Eu Odeio em Você – Badboy
A Última Música – O cara perfeito
A Culpa é das estrelas – O cara perfeito
E podemos ir além e considerar o gênero de fantasia que traz o triângulo amoroso e a indecisão muitas vezes fica entre o badboy e o frágil ou cara perfeito.
The Vampire Diaries, Crepúsculo, Instrumentos Mortais, O Lado Mais Sombrio (esse é um livro, porém atende os requisitos de ser um romance adolescente fantasioso).
Todas essas obras trazem a mulher como o centro desse triângulo, onde ela é desejada e temos duas personalidades contrastantes e encantadoras para ela ter que escolher.
Desses exemplos podemos apontar O Lado Mais Sombrio como o que é um pouco diferente, a protagonista acaba ficando com os dois no final. Não ao mesmo tempo, ainda assim diferente das outras obras, ela não troca um por outro. (Tem que ler a história para entender).
Até existe alguns casos onde o centro é o homem, como a série One Tree Hill faz com Lucas, que precisa decidir entre Peyton e a Brooke. Mas, aqui a questão é bem diferente do que é levantado nesses filmes.
E porque essas questões tendem a ser maior para o público feminino?
O tipo de filme que retrata a idealização do homem sobre a mulher é uma coisa muito mais sexual do que romântica. Existe o termo Male Gaze, que se trata justamente desse ponto e merece um texto só sobre ele.
Do mesmo modo, podemos dizer que filmes feitos para homens héteros cis gênero têm a mulher como um objeto sexual, um objeto de posse. Então a idealização da mulher perfeita está muito mais atrelada a sua aparência do que a sua personalidade.
Claro, existem exceções, mas aqui estamos falando da grande massa produzida.
Na vida real o amor pode ser chato
Os filmes trazem o recorte de uma história que deve cativar o seu público a vê-lo, o que claramente quer dizer cenas muito bem trabalhadas. Momentos de diversão, a conversa constante e estarem juntos quase sempre, ainda mais porque o filme é sobre eles. Paletas de cores bonitas e trilhas que acompanham.
A realidade é bem menos encantadora que isso e é importante que a gente entenda o que é de fato o amor.
A meu ver esses filmes estão remetendo muito mais a paixão do que ao amor em si. Ao passo que quando estamos apaixonados não pensamos direito, tudo é sempre excitante, você quer beijar e estar com aquela pessoa. Pensa nela quase o dia todo, tenta conversar com ela sempre e muitas vezes têm ansiedade para reencontrá-la.
O amor ele é algo mais consciente e construído, ele se faz a partir das escolhas. Nem sempre você vai ser amado com a mesma intensidade todos os dias e nem você vai amar com a mesma intensidade. Ainda assim você escolhe estar ali porque se importa e quer o bem do outro. Você abre mão de certas coisas, assim como ela, para que ambos cheguem a um acordo e possam conviver. Você faz algo sem esperar que receba em troca. E aceita estar lá mesmo com todos os defeitos daquela pessoa.
Ter aquela pessoa presente em vários momentos ou até mesmo conviver com ela diariamente pode ser cansativo e vai te exigir muito mais que um simples gostar. Você respeitar as vontades e limites do outro. E por mais triste que seja, talvez você nem fique com ela no final, mas aceita que a felicidade dela é o que importa. O amor na sua essência ele é mais altruísta.
E o mais importante, ele pode ser tranquilo e leve.
Não é necessário brigar ou se sentir ansiosa para amar alguém. Como temos em filmes que reforçam a ideia de quem briga é porque ama.
O par perfeito não existe
Mesmo com uma franquia de Noah Centineo para nos convencer do contrário, a pessoa perfeita não existe. Mas a ideal sim, que é aquela que está disposta a tentar algo com você.
É muito fácil nos apaixonarmos por uma idealização nossa, a famosa paixão platônica. Quem nunca ficou a fim de alguém ou idealizou algum personagem ou artista como gostaria que fosse e quando viu a realidade percebeu ser bem decepcionante?
Essa é a mesma sensação que temos ao ver esse tipo de filme, uma decepção por nosso relacionamento não ser assim ou por não acharmos alguém como idealizamos.
Entenda, não estou dizendo que esses filmes não devem ser consumidos, eu mesma sou uma apreciadora do gênero. Contudo é importante a discussão para que a gente não espere um romance que nunca vai ser como em um filme.
Eu gosto bastante do filme A história de um casamento, apesar de ele não ser necessariamente um romance, ele mostra o após. E como o amor está nos detalhes. Mesmo após o término a Nicole ainda se preocupa com Charlie. Vemos isso na cena em que vão pedir um almoço e ela sabe o que ele gosta ou pode comer. Nisso ela toma a frente e faz o pedido de ambos, mesmo estando em uma negociação do divórcio. Esse filme mostra as falhas deles e o porquê não deram certo como casal. O que também faz parte da vida.
Amor e outras drogas têm alguns pontos que são bem questionáveis, porém o romance em si é construído de uma maneira mais palpável. Eles brigam, terminam, se relacionam com outras pessoas, ainda que se gostando tentam seguir em frente. Eles acabam voltando, mas todo o amor deles foi construído e escolhido, mesmo com as dificuldades.
Apesar de citar muitos filmes, as séries também podem trazer essa percepção. This is us, por exemplo, traz Rebecca que amou verdadeiramente Jack, e podemos ver o quanto de dificuldades e problemas ambos tiveram. As crises e o quase término. É uma visão muito mais crível considerando um casamento de anos com seus altos e baixos.
As relações amorosas de todos os personagens eu acho muito bem escrita, pois todos têm suas dificuldades. Por mais que tentem fazer da vida um conto de fadas, a realidade bate na porta e só o amor idealizado não é o suficiente para manter uma relação.
Prevalece o que funciona
O cinema tem muitas coisas que são replicadas para gerar um consumo em massa.
Portanto, muitas de suas produções vão ser pautadas em clichês que agradam ao público. Como eu disse antes, não estou afirmando que pare de consumir. No entanto, acredito que ter consciência ajuda a aceitar melhor a nossa realidade, além de questionar e procurar obras que saiam um pouco dessa linha de fórmulas prontas. Aproveite as obras e torça pelo seu personagem, mas entenda, o que vemos na tela é sempre um recorte pequeno de uma longa jornada.
Maia Gomes
Já fui instrutora de computação gráfica, então já estudei muita coisa enquanto tentava encontrar o que queria fazer na vida. Ilustração, modelagem e animação 3d, composição de imagens, edição e motion. Confesso que de todas essas áreas sempre gostei de escrever e gravar vídeos. Atualmente me formei em cinema, atuo como editora de vídeos, designer e redatora para social media. Estou começando na carreira de roteirista. Consegui como primeiro trabalho filmado um videoclipe do Mc Pedrinho e agora estou desenvolvendo alguns projetos pessoais que ainda vão ser filmados. Sempre gostei de cinema e de entender como tudo funcionava, comecei a estudar por conta há mais tempo do que consigo me lembrar e hoje é um universo que todo dia aprendo mais.
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